ANGÚSTIA EXISTENCIAL – MITO DE PINOCCHIO
- Gillian Site
- 18 de ago. de 2023
- 4 min de leitura
A angústia é uma sensação muito intensa, que nos coloca diante da nossa dificuldade de fazer escolhas, de nossas frustrações e dores de existir. Quando sentimos pensamentos e sentimentos ambivalentes, surgem nossos conflitos.
Muitas vezes não conseguimos ou não nos permitimos fazermos escolhas em nossa vida, seguimos o caminho escolhido por outras pessoas. Buscamos um ideal que nos foi trazido na infância pelos nossos pais. Mesmo sendo um fator estruturante do psiquismo, isso gera muita ansiedade na nossa vida. Faz parte da teoria do ideal do ego, que é o desejo dos nossos pais projetado em nós, conforme as expectativas deles. Se nós internalizarmos isso inconscientemente de forma exagerada, começa a ocorrer um “falso self” para corresponder às expectativas dos outros. Na vida adulta isso pode aparecer de diversas formas, como um sentimento de vergonha diante de eventuais fracassos, melancolia, depressão, angústia e pânico.
Não conhecer nossos próprios desejos, a falta de identidade, viver pelas cordas (pensamentos) manipulados pelo outro é o que nos torna uma pessoa de mentira. Precisamos nos diferenciar das expectativas dos outros, livrando-nos de sermos apenas marionetes presas pelas cordas desse desejo alheio. Até gostaríamos de ser mais obedientes e merecer o apreço dos nossos pais, fazer o que esperam de nós, mas quando assim nos comportamos, sentimos como se tivéssemos perdido a individualidade, o senso de quem somos. Tornamo-nos personagens do sonho parental.
. As aventuras de Pinocchio sugerem que um bom homem precisa, de certa forma, ter sido um filho indisciplinado, pois só aquele que teve a coragem suficiente para contestar o desejo paterno, experimentar outros caminhos, muitas vezes falhando, vai conquistar a sabedoria necessária para crescer.
No filme, Pinóquio já nasce com o peso de uma expectativa do pai dele, pois ele deseja ter um filho para ter companhia e dar sentido a sua vida. É a realização do desejo do pai. Aparece tanto na angústia de Pinóquio, quanto de Gepetto, que é um pai que tem suas dores, está sozinho e com dificuldade de se relacionar com pessoas. Pai e filho percorrem um longo caminho de provações para concluir que esses papéis não nascem com a criatura, são resultado de um longo trabalho de construção subjetiva.
Pinóquio é um boneco que quer ser um menino de verdade. Sua angústia existencial é saber se a sua verdadeira natureza é um menino ou um boneco. Para ser um menino de verdade, precisa saber o que é certo e errado. Ele não tem consciência, é manipulado por outras pessoas. Precisa cortar as cordas, através do autodescobrimento, pensar com a própria cabeça, com a coragem de se conhecer.
Pinocchio precisa sair do princípio do prazer e ir para o princípio da realidade. Muitas vezes, esquece que precisa estudar, aprender para não ficar entregue aos instintos com prazeres imediatos. Usa como mecanismo de defesa, a mentira. Nós mentimos quando comprometemos nossos desejos pela vontade do outro. O conselho da fada é ser sincero e verdadeiro. Porém Pinocchio sempre faz pouco caso da sabedoria que lhe é oferecida, incluindo o seu conselheiro grilo(sua consciência) e dessa forma, cai em qualquer cilada que encontra no caminho. Ele só aprende com a experiência, vai errando e errando muito. Ele opta sistematicamente por péssimos conselheiros e aceita convites que o levam ao mau caminho. A razão das más escolhas deve-se, muitas vezes, à necessidade de aceitação por parte dos outros garotos. O mau caminho é atraente a curto prazo, mas oneroso a longo prazo. Talvez esses desvios é que mostram a nossa humanidade e nossa riqueza cultural, pois nossa natureza não nos oferece um caminho simples. É próprio do humano insistir nos mesmos erros. Na verdade, isso pode ser uma das definições da neurose, um caminho equivocado que não conseguimos recusar. E essa é a atitude sistemática de Pinocchio, já que ele não erra uma, mas sim várias vezes, e sempre do mesmo jeito. O boneco de madeira é nesse comportamento, mais humano impossível, então, desde sempre foi um menino de verdade. Seu caráter voluntarioso e rebelde, alternando repetidos erros com ataques de remorso e culpa, faz dele uma contradição permanente, tão humano, assim como todos nós.
Atualmente as redes sociais são a nossa grande mentira, manipulam o desejo. Sentimos que precisamos corresponder às expectativas de felicidade postada, gerando muita angústia. É uma frustração por não alcançar o ideal de beleza, dinheiro, amigos e felicidade. Sem autoconhecimento, andaremos perigosamente na linha da idealização. Publicar é existir, existir através do olhar do outro, é vaidade e insegurança.
Angústia existencial é não conseguir olhar para dentro de si, sentir vazios e falta de sentido para vida. O Pinóquio fugiu por não saber lidar com as suas questões. Muitas vezes fugimos de diversas formas na nossa vida, como se isolar no quarto, dormir demais, fazer muita academia, beber demais, fumar....
Mentimos para nós mesmo, por não dar conta de falar a verdade, pois causa dor e desprazer. Parar de mentir para nós mesmos, cortar as cordas que nos controlam, buscar a verdade que se oculta na mentira, é a própria atitude de ser verdadeiro e muito humano, é o caminho para atingir um estado de liberdade interna.
Gillian Rabelo – psicanalista
Contato: +44 7857 948091
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