AUTOSSABOTAGEM
- Gillian Site
- 11 de mar.
- 6 min de leitura
Atualizado: 13 de mai.
AUTOSSABOTAGEM
.... eu nunca faço nada certo, sou incapaz de sentir orgulho de mim mesmo. Se consigo algo bom, logo sinto que alguma coisa de ruim vai acontecer....
.... não basta ser bom, tem que ser perfeito. De modo que acabo não fazendo nada e me sinto um fracasso....
.... ninguém gosta de mim, só me relaciono com quem não presta, isso só acontece comigo, deve ser karma...
Esses são pensamentos tipicamente autodestrutivos, nos quais o insucesso na vida profissional e amorosa parece sem razão, como um efeito de alguma maldição. Mas quem nunca pensou assim em algum momento da sua vida? É normal que, em determinadas situações difíceis, nos sintamos fragilizados e incapazes. Porém, quando esses sentimentos ocorrem em excesso, gerando sofrimento, é hora de olharmos mais profundamente a origem desse comportamento. A autossabotagem é uma forma de se prejudicar, mas de maneira oculta para si mesmo.
A maioria dos comportamentos destrutivos está quase totalmente fora da consciência e, em geral, se relaciona a questões emocionais. É mais fácil percebermos nos outros do que em nós mesmos. Quando acontece conosco, frequentemente ficamos cegos aos nossos próprios padrões de repetição, pois esses estão profundamente enraizados.
Seguindo a linha da psicanálise, a origem desse padrão de comportamento se inicia na infância, onde surgem dilemas inconscientes que agem contra nós mesmos. É como se recebêssemos uma herança invisível.
Muitas pessoas, infelizmente, crescem em ambientes familiares conturbados. Uma maneira de tentar preencher a ausência da estabilidade emocional, é buscar um parceiro que proporcione o equilíbrio que não encontraram em casa. No entanto, o contraditório é que, nessa busca por segurança, muitas vezes acabam repetindo os padrões disfuncionais vividos na infância. É como se revivessem antigos traumas, tentando, de maneira inconsciente, reparar o que ficou pendente, e assim acabam repetindo as dores do passado. Isso pode se manifestar na escolha de um parceiro que lembre a figura de um dos pais — seja a mãe crítica ou o pai autoritário. Experiências ruins que você já viveu refletem na escolha de um tipo psíquico de pessoa. Observe que, se todas as pessoas com quem você se relaciona geram sofrimento, você está escolhendo sempre o mesmo tipo de pessoa.
Alguns exemplos mostram o peso da relação entre passado e presente no ciclo autossabotador. O exemplo clássico é aquela pessoa que se vê sempre num relacionamento abusivo e, a cada novo relacionamento, continua sendo maltratada. E por que isso acontece? Geralmente, escolhem parceiros que possuem características de um dos pais com quem tiveram mais dificuldade de se relacionar. O pai autoritário é repetido na esposa ou no marido autoritário. A criança que percebeu um dos pais como agressivo ou insensível acaba tentando, de maneira inconsciente, reviver essa relação com a esperança de mudar o resultado, de obter o amor e a acolhida que não tiveram na infância. A compulsão à repetição é uma forma de traduzir em ação um trauma, por meio de um comportamento destrutivo, embora quase sempre o indivíduo não tenha noção de que é exatamente isso que está fazendo. Como não conseguem identificar a dor, acabam agindo de forma a recriar o sofrimento.
Quando os pais envolvem os filhos em seus conflitos, muitas crianças desenvolvem um forte senso de responsabilidade e culpa, acreditando que, se algo der errado, a culpa é delas e que devem corrigir a situação. Elas herdam uma consciência punitiva, com dúvidas sobre si mesmas, falta de confiança e baixa autoestima. Se algo vai mal com seus pais ou com sua família, acreditam que, além de ser culpa delas, é também sua responsabilidade corrigir os erros e consertar o problema.
Esse sentimento de ser responsável por resolver os problemas alheios se estende para a vida adulta. A pessoa passa a se sentir obrigada a consertar a vida dos outros, mesmo às custas de suas próprias necessidades. E, se não conseguem cumprir esse papel, acreditam que fracassaram. Assim, está formado o cenário para que a criança adulta continue tentando consertar o mundo e as pessoas. Isso gera um padrão de atração por pessoas que precisam de ajuda, mas, em vez de ser uma relação de apoio mútuo, a pessoa se vê no papel de "salvadora", sacrificando sua própria felicidade. A criança que se sente com o dever de melhorar a vida de um dos pais maltratados torna-se o adulto que tem de melhorar a vida dos outros, mesmo à custa das suas próprias necessidades. Assim, desenvolve uma atração por pessoas carentes, Acaba se casando com alguém que parece desamparado, frágil ou incapaz. O problema que então aparece é que suas próprias necessidades são negadas. Ao final, a pessoa se sente exausta, não valorizada e frustrada, gastando toda sua energia nos outros e recebendo pouco ou nada em troca. Essa situação pode gerar sentimentos de raiva, mas, por ser socialmente inaceitável, a raiva muitas vezes é substituída por uma sensação constante de ansiedade e culpa.
Outro tipo de autossabotagem que é comumente observado na clínica, são aquelas pessoas que estranhamente fracassam quando triunfam. Quando atingem um objetivo pelo qual lutaram muito, como uma promoção importante no trabalho, começam a tomar atitudes que os levam a sabotar esse sucesso, até mesmo se demitindo ou abandonando a posição conquistada. Isso ocorre porque vivem um conflito inconsciente entre o desejo de ter sucesso e o sentimento de culpa por achar que não merecem essa conquista. Para algumas pessoas, o sucesso pode ser visto como algo negativo, uma espécie de traição aos outros, levando-as a rejeitar o sucesso, sentindo-se como se estivessem cometendo um erro ou pecado. Nesse caso, o sucesso é equivalente a derrotar ou destruir os outros. O sucesso torna-se algo negativo, evidenciando que o indivíduo está, de alguma forma, usufruindo de algo que não merece. Assim, a crença inconsciente é que o sucesso não é merecido, e a única forma de lidar com isso é se desfazer dele, minando suas próprias conquistas.
Um paciente que atendi apresentava, em alguns aspectos, esse tipo de sintoma. Ele se via como um impostor nas suas conquistas, não reconhecendo suas próprias realizações e tendo uma percepção distorcida sobre suas conquistas pessoais. Depois de algum tempo de análise, percebeu o quanto idealizava seu pai, vendo-o como uma autoridade e competência num grau muito superior ao real. O pai era um grande escritor e conhecedor da língua portuguesa. O filho idealizava tanto esse pai que começou a se achar muito incapaz em relação a ele. Vivia numa eterna comparação, achando seu português e sua letra muito inferiores aos dele.
O impacto na sua vida adulta, é que esse sentimento aparecia nas relações diárias com outras pessoas. Ele supervalorizava a capacidade dos outros e duvidava das próprias qualidades. Por se achar inferior, surgia um medo de ser descoberto e desmascarado, criando um ciclo de ansiedade. Imaginava que algo ruim poderia acontecer, já que se sentia incompetente para a vida. Vivia com medo de que os outros perdessem a imagem positiva que ele queria mostrar. Ele construiu um padrão muito elevado para as pessoas que considerava qualificadas; assim, achava que seu trabalho nunca estava bom o suficiente. Era uma busca impossível pela perfeição em tudo o que fazia. Começava projetos para, posteriormente, perder o interesse, assim, inconscientemente, não precisaria sentir culpa por ser mais bem-sucedido que o pai.
Como ultrapassar esse pai? Já que está medindo forças, sente que, quando vence esse pai, precisa anular essa vitória. É um dilema, a pessoa tem que lidar com a culpa e o desejo. Essa é uma forma de manter esse pai no seu lugar de autoridade idealizada e ele se manter na posição de filho. Talvez por sentir que esse é um lugar mais protegido. Muitas sabotagens acontecem quando temos que passar da condição de filho para condição de pai ou mãe.
É comum conhecermos o medo do fracasso, mas o medo do sucesso também pode ser uma barreira significativa e paralisante. A psicanálise utiliza uma abordagem em que os pacientes são incentivados a relatar minuciosamente eventos dolorosos de suas vidas. O objetivo é conectar as emoções difíceis aos acontecimentos que as originaram, assim como às suas repercussões ao longo do tempo. Com isso, ocorre uma transformação, quebrando crenças formadas na infância e permitindo que a pessoa se torne um adulto capaz de assumir o controle de sua própria vida. O foco do processo psicanalítico é identificar as origens dos conflitos inconscientes.
Através desses relatos, observamos o quanto o ambiente em que crescemos, nossa formação e história impactam profundamente sobre nós. Para entender a dinâmica do comportamento atual, é fundamental reconhecer a relação entre o passado e o presente. Para promover mudanças e superar os conflitos, não é suficiente apenas uma compreensão racional; é necessário haver uma compreensão emocional, em que os sentimentos possam ser plenamente expressos.
Os padrões repetitivos e autossabotadores refletem uma tentativa inconsciente de resolver traumas do passado. Entretanto, ao invés de curar as feridas, acabam perpetuando o sofrimento. Isso é o resultado de uma estrutura psicológica que se formou ao longo da vida, originada de uma criança ferida. Entender o que está acontecendo, é um importante passo para mudanças. A boa notícia é que a autossabotagem é um ciclo que pode ser quebrado.
Gillian Rabelo
@gillianrabelo_psicanalista
Aviso: Este texto faz parte do livro Autossabotagem e Outras Barreiras Psicológicas , no qual eu participei escrevendo esse capítulo, que é o capítulo 3.
Fico feliz em compartilhar esse capítulo com vocês e espero que gostem!
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